sexta-feira, 25 de outubro de 2013


Lenda do Alfageme de Santarém


Ora aconteceu que, certo dia, D. Nuno Álvares Pereira, cavalgando de longe, veio parar à porta de Fernão Vaz.  A história tradicional do Alfageme de Santarém, que o povo conta de várias maneiras — mas sempre à sua maneira — foi conservada para a posteridade através da Crónica do Contestante, atribuída a Fernão Lopes, e deu origem, além de outros trabalhos novelísticos, poéticos e jornalísticos, ao bem conhecido drama teatral de Almeida Garrett, que se representou pela primeira vez em público no velho teatro da Rua dos Condes, em 1842.
Porém, para a evocação que vou fazer, mais do que nessas duas preciosas fontes, baseio-me na narrativa que dela ouvi, quando ainda menino, a um velho campino do Ribatejo. Foi essa a primeira vez que aos meus ouvidos chegou a história do Alfageme. E lá diz o povo, na sua terna sabedoria: «Não há amor como o primeiro…»·
Ele chamava-se Fernão Vaz e era considerado, pelos entendedores, o melhor alfageme das redondezas. Já seu pai fora também um grande artífice. À custa de muito trabalho e de alguns sacrifícios, Fernão Vaz juntara fortuna que lhe dava uma certa independência. E também uma certa soberba. Dizia-se até que fora por via dessa fortuna que com ele casara a jovem e linda Alda Gonçalves, a qual, em tempos, andara enamorada de D. Nuno Álvares Pereira.
D. Nuno saltou em terra e dirigiu-se ao homem que continuava a trabalhar, como que indiferente ao que se passava em seu redor.
— Eh, mestre alfageme!... Podeis corrigir-me esta espada?
O outro suspendeu o trabalho que tinha entre mãos. Olhou para D. Nuno. Olhou para a espada. E só então falou.
— Senhor, por hoje cheguei ao fim do meu trabalho... E bem preciso de descansar...
Olhou-o de novo e rematou com ênfase:
— Mas, enfim, como se trata de vós, ordenai. Farei o que desejardes.
D. Nuno Álvares Pereira sorriu.
— Obrigado, mestre alfageme... Disseram-me que ninguém possui habilidade igual à vossa...
No silêncio que se fez, olharam-se melhor. D. Nuno Álvares Pereira reparou então mais atentamente no homem que tinha diante de si.
— Céus, de onde conheço eu o vosso rosto?... Onde vi eu já esses vossos olhos... irónicos e indiscretos?
Fernão Vaz inclinou-se levemente, numa vénia.
— Senhor D. Nuno Álvares Pereira...
Novo espanto. Maior e mais profundo.
— Pois... conheceis-me?
Foi a vez do alfageme sorrir.
— E quem não vos conhece?
Depois, avançou um pouco e disse em tom pausado:
— Vou ajudar a vossa memória, senhor. Eu sou o marido de Alda Gonçalves... agora Dona Alda Vaz!
Seguiu-se uma pausa. Pausa feita de recordações. De alegres e tristes recordações. Quando voltou a falar, a voz de D. Nuno Álvares Pereira era menos firme.
— O quê? Sois vós?... Bem me lembro agora, afinal... Principalmente dos vossos olhos, irónicos e indiscretos...
Mudando o tom da voz, continuou, com aquela segurança de ânimo que lhe dava uma irresistível autoridade:
— Mas aqui vos deixo a espada, mestre alfageme... Quando a darão pronta?
O outro segurou a arma e mediu-a longamente com o olhar.
Longamente e abstractamente. Pensava decerto noutras coisas. Mas a sua voz soou igualmente segura, como quem acaba de tomar uma grande resolução.
— Amanhã de manhã podereis vir buscá-la, senhor D. Nuno… Não me deitarei sem que a deixe corrigida e afiada, como desejais!
D. Nuno sorriu cortesmente.
— Obrigado, mestre... Até amanhã!·
Tal como prometera, Fernão Vaz passou a noite inteira trabalhar a espada de D. Nuno Álvares Pereira. Era já manhãzinha quando recolheu aos seus aposentos. Apesar de todas as recomendações, Alda ainda estava desperta.
— Só agora, Fernão Vaz?
Ele estacou à porta do quarto ao escutar aquela voz doce mas autoritária. E foi ainda dominado pela surpresa que balbuciou uma pergunta:
— Pois não dormistes?... Ficastes toda a noite à minha espera?
Um sorriso bonito e amoroso envolveu a resposta.
— Sim, meu bom marido... Eu poderia lá adormecer sem a vossa companhia!...
E, num ar de ternura, acrescentou entre dois breves suspiros:
— Sozinha, tive tanto susto, senhor meu marido! Felizmente, ouvia-vos a trabalhar na oficina...
Suspendeu-se um momento. E, num reflexo de curiosidade recalcada, acabou por perguntar:
— Mas, afinal, que trabalho foi esse que vos fez esquecer a vossa mulher?
Fernão Vaz olhou-a, sorrindo. Sorriso com mistura de carinho e de altivez.
— Sabeis lá!... Estive a afiar e a corrigir uma espada... para quem talvez não o devesse fazer...
Ela soergueu-se do leito. Intrigada. Desconfiada. Perplexa.
— Que tamanho segredo é esse, senhor meu marido?... De quem se trata?
Fernão Vaz fitou-a bem de frente.
— Pois escutai, senhora... Estive a trabalhar... para D. Nuno Álvares Pereira!
Ela não pôde disfarçar o choque. A sua voz tornou-se nervosa e trémula.
— Como? Que dizeis?... D. Nuno esteve aqui?... E que vos desejava ele?
O sorriso do marido alargou-se, estendeu-se, acentuou-se, deixando-a mais tranquilizada.
— Já vos disse... Estive a corrigir e a afiar a sua espada.
Um suspiro escapou-se dos lábios de Alda Vaz.
— Oh, meu Deus!
O marido inclinou-se imediatamente para ela, ávido de revelações.
— Vedes?... Vedes como ainda gostais dele?... Eu sempre temi este momento!
As mãos dele caíram, num desânimo sincero, ao longo do corpo.
— O vosso coração não me pertence!
Mas logo as mãos dela correram a segurar as mãos do marido, apertando-as, puxando-as para si, aquecendo-as com amor.
— Calai-vos, senhor meu marido!... Não deveis dizer tontices... O meu coração é vosso, desde que casei convosco...
Ele ainda quis aproveitar, para insistir na sua suspeita de ciúmes.
— Mas ficastes impressionadas, confessai!
Alda Vaz riu-se. Riso meigo, tranquilizador.
— Ora, apenas porque receei por vós... Às vezes, acreditai, o despeito transtorna os mais sensatos...
O tom da sua voz adquiriu ainda maior sinceridade.
— E embora eu confie plenamente na nobreza de sentimentos de D. Nuno, tive medo, muito medo!
Suspirou profundamente, sentidamente, e rematou:
— Felizmente que ele veio por bem!
Fernão Vaz endireitou-se, numa postura altiva.
— Eu disse-lhe que era vosso marido!
Por instantes, a curiosidade bailou no olhar alvoroçado de Alda Vaz.
— E ele?... Que disse ele?
A resposta veio com um sorriso. Sorriso tocado de ironia.
— Nada disse, senhora!... Nem sequer perguntou por vós...
Alda Vaz pestanejou. Nem pareceu reparar na ironia do sorriso. Limitou-se a concluir, em voz baixa e despida de emoção:
— Já me esqueceu, decerto... como eu também já o esqueci...
Depois estendeu as mãos ao marido, num gesto de carinhosa chamada.
— Sinto-me feliz, tal como sou!
Ele ajoelhou junto do leito e beijou-lhe as mãos. Suavemente. Amorosamente.
— Como vos adoro, senhora!... Hoje mais que nunca!·
Na manhã seguinte, conforme ficara combinado, D. Nuno Álvares Pereira veio à oficina logo ao romper do sol. O alfageme já o esperava. Mal o viu, correu para ele.
— Aqui tendes a vossa espada, senhor.
D. Nuno Álvares Pereira examinou-a atentamente, como um conhecedor. E o seu rosto reflectiu alegria e satisfação.
— Belo trabalho, mestre alfageme... Está perfeitíssima!
Voltou-se então para trás, gritando a um dos seus acompanhantes.
— Eh, escudeiro, pagai ao mestre alfageme o que ele vos pedir!
Mas Fernão Vaz, nessa altura, adiantou-se um pouco e interpôs-se entre ambos.
— Perdão, senhor D. Nuno... Se mo permitem, eu por ora não quero de vós nenhum pago.
O outro olhou-o. Surpreendido. Desconfiado. E gritou:
— Mas porquê?... Estais louco, decerto!
Sem alterar a voz, o alfageme confirmou:
— É o que vos digo, senhor... Nada quer receber.
E emoldurando então as suas palavras firmes num sorriso de confiança, acentuou:
— Ide embora, que em breve voltareis conde de Ourém... E então me pagareis o que eu merecer, senhor conde!
O semblante de D. Nuno desanuviou-se um pouco. Um breve sorriso nasceu ao canto dos lábios.
— Não me chameis conde, porque eu não o sou, mestre alfageme...
A sua voz tornou-se menos dura e autoritária.
— Deixai que vos paguem tudo o que quiserdes...
Fernão Vaz cruzou os braços numa obstinada recusa.
— Não é preciso, senhor... Eu só vos disse a verdade... E assim será cedo, se Deus quiser!

E Deus quis, na verdade, que a profecia do alfageme de Santarém depressa se realizasse. Mercê dos seus feitos de valentia e de heroísmo, fazendo frente a inimigos muito superiores em número e vencendo-os sem remissa, D. Nuno Álvares Pereira foi agraciado por el-rei D. João I com o honroso título de conde de Ourém.

Entretanto, em redor da vida de Fernão Vaz, o alfageme de Santarém, tinham-se amontoado muitas nuvens de tormenta, que ameaçava desencadear-se com terríveis consequências. De facto, invejas e intrigas minavam o prestígio de Fernão Vaz, até que os seus inimigos pessoais, arrastados pelo despeito e pela maldade, resolveram acusá-lo publicamente como traidor à Pátria.
Fernão Vaz sentiu-se desamparado. O cerco apertava-se cada vez mais. Os fregueses desapareceram, apavorados. E ele acabou por ser preso, vergado às infames acusações que lhe faziam.
Triste, desesperada, Dona Alda Vaz chorou a sua dor. A sua dor e o seu protesto.
— É falso! É mentira! Meu marido está inocente, mil vezes inocente! São os outros que nos querem mal, porque somos ricos e felizes... Socorrei-nos, meu Deus! Valei-nos!... Livrai meu marido da forca!
Mas de nada serviam as palavras e as lágrimas de Dona Alda Vaz. O alfageme de Santarém continuou preso e os seus bens foram totalmente confiscados. Vinha próxima a hora da morte!

Como último recurso, não vendo qualquer outra possibilidade, a jovem esposa decidiu procurar pessoalmente D. Nuno Álvares Pereira, o novo conde de Ourém.
Ele não a fez esperar. Mas quedou-se boquiaberto, quando a viu surgir na sua frente.
— Senhora! Vós aqui... e nesse estado? Por Deus!... Porque chorais, senhora?... Que vos aconteceu?
Entre duas novas crises de lágrimas que a faziam tremer, Dona Alda Vaz conseguiu explicar.
— Senhor D. Nuno, sabei que prenderam meu marido... Imaginai senhor! Acusam-no de traidor!
Parou, já sem fôlego. Exausta. Deprimida. Prestes a desmaiar. Porém, num novo impulso de coragem e de revolta, ainda soluçou baixinho:
— Sim, acusam-no de traidor… mas ele está inocente!... Absolutamente inocente!
E como que a lembrar-se do passado, ergueu para D. Nuno os lindos olhos inundados de lágrimas.
— Senhor... ainda acredita em mim?
Um suspiro incontido saltou do peito de D. Nuno Álvares Pereira e escapou-se-lhe por entre os lábios.
— Ainda acredito em vós, sim!...
Semicerrou os olhos e as suas mãos cruzaram-se.
— Houve tempo em que talvez não acreditasse... Foi muito forte a desilusão de amor que me fizestes sofrer...
Ela baixou a cabeça. Como que vencida. Mais do que vencida, humilhada. Expiando a sua própria culpa.
— Senhor... por tudo vos peço que esqueçais esses tempos!...
Ele amparou-a docemente, obrigando-a a sentar-se. Depois sentou também diante dela e falou calmamente.
— Bem sei, Dona Alda Vaz... Tendes medo que o despeito me domine o coração, não é verdade?...
A voz tornou-se mais austera.
— Descansai!... Eu não posso nem devo olvidar que a profecia do vosso marido saiu certa... Infalivelmente certa!... Hoje sou conde Ourém, tal como ele me disse certo dia, em que eu não sonhava ainda sequer com esse título...
Levantou-se, deu alguns passos e voltou a parar em frente da desolada e lacrimejante Dona Alda Vaz. Depois sorriu, a acompanhar qualquer reflexão que lhe vinha do íntimo.
— Tem graça, Dona Alda Vaz... Lembro-me agora que vosso marido me disse também, nessa altura, que depois de eu ser conde de Ourém lhe pagaria o trabalho, conforme ele merecesse...
A sua voz soou como um clarim de combate.
— Pois muito bem: vou pagar-lhe!
A medo, tremendo mais, D. Alda Vaz perguntou:
— Senhor! Que ides fazer?... Matá-lo?
Sorrindo de novo, com ar resoluto e voluntarioso, ele respondeu apenas:
— Não. Vou salvá-lo!
Foi fácil a D. Nuno Álvares Pereira conseguir o seu intento. Tendo narrado tudo a D. João I, depressa ele conseguiu o perdão real para Fernão Vaz. E, montando o seu corcel mais ligeiro, meteu-se velozmente a caminho, chegando bem a tempo de salvar da forca o alfageme de Santarém, que mal podia acreditar em tamanha felicidade.
Mas D. Nuno Álvares Pereira foi ainda mais além. Juntou Fernão Vaz e sua esposa num abraço de amor, dizendo:
— Assim se cumpriu a vossa profecia, mestre alfageme!
Fernão Vaz soltou um suspiro, fantasma de atroz recordação.
— É verdade, senhor... Já é conde e afinal pagastes muito melhor do que eu esperava!...
Então, D. Nuno Álvares Pereira avançou para ele. O seu semblante tornou-se mais sério.
— E agora sabeis que mais, Fernão Vaz?... Quero também armar-vos cavaleiro, para vos compensar das injustiças que vos foram feitas!
Surpreendido, o alfageme fitou D. Nuno bem de frente. A sua testa salpicou-se de reflexões. E concluiu, abanando a cabeça lentamente:
— Não, senhor D. Nuno, não pode aceitar a honra que me ofereceis. Vós sois um honrado e digno fidalgo... Não deveis descer de onde chegastes... Eu sou filho de alfageme, de um alfageme que sempre colocou o seu carácter acima de todas as coisas da vida... Por isso, D. Nuno, eu não quero subir, porque também não quero descer...
Por momentos quedaram-se em silêncio. Por fim, D. Nuno concordou.
— Aprovo as vossas palavras, embora elas contrariem um desejo que me seria muito grato. Já que nada mais pode fazer, desejo-vos muitas felicidades, para vós e para vossa esposa.
O mesmo sorriso de sempre abriu-se no rosto de Fernão Vaz.
— Obrigado, senhor... Eu bem sabia que podíamos confiar em vós!
Do alto da sua montada, D. Nuno Álvares Pereira ergueu o braço, num gesto de saudação.
— Ide, amigos!... Ide, e que Deus vos proteja!
Com um último adeus, mas sem dizer mais palavra, o alfageme e sua mulher seguiram de abalada, caminho de Santarém.
D. Nuno ficou afagando a sua espada de combate. O amor abalava para sempre da vida do herói. Mas ficava a espada que daí em diante seria a sua companheira e a sua dama!

Sem comentários:

Enviar um comentário